“A negritude é um ato político que não tem relação direta com a cor; é político porque é de autoafirmação e reconhecimento histórico, social e cultural da população negra no Brasil”. É o que explica a professora Patrícia Rufino, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). “Perpassa pela compreensão do lugar em que a população negra foi colocada, da discriminação, de não reconhecimento desse sujeito na construção da população brasileira. A cor é o componente que vai identificar a singularidade na negritude e varia de sujeito para sujeito, podendo ser preto ou pardo”.
Esse “lugar” de discriminação que a professora descreve tem efeitos na representatividade negra na composição dos três poderes no Espírito Santo. A maioria avassaladora das cadeiras é ocupada por brancos, poucas por pardos e a grande minoria por pretos.
No poder Executivo capixaba, somente a vice-governadora Jacqueline Moraes se autodeclara negra e levanta a bandeira da negritude. Nas 24 secretarias, somente o secretário-chefe da Casa Militar, Coronel Jocarly Martins de Aguiar é preto, mas não quis comentar sobre o tema.
Para a vice-governadora, os negros a representatividade negra nos poderes ainda é pequena e se traduz em “resistência”. “Se pensarmos que a luta contra o racismo sempre foi historicamente velada, inclusive, através do isolamento político, podemos dizer que o negro resiste. Vemos isto nos poucos registros de uma história política não institucional e que nem sempre é contada, e podemos citar como exemplo o Quilombo dos Palmares. Entendo que a participação política da negra e do negro deve ser abraçada por todos que, independente da cor, acreditam e lutam por uma sociedade plenamente democrática e justa”, afirma.
Nas prefeituras da Grande Vitória, a maioria dos prefeitos se autodeclara pardo: Audifax Barcelos (Rede), na Serra; Gilson Daniel (PV), em Viana e Juninho (PPS), em Cariacica. Entretanto, a trajetória dos mesmos não demonstra autoafirmações públicas sobre sua negritude ou envolvimento declarado com pautas defendidas pelo movimento negro.
Judiciário
Dos 28 desembargadores do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), somente Willian Silva é negro. Ele declara que a edificação de um Judiciário mais plural é demanda de toda a sociedade que pretende evoluir democraticamente.
“A população brasileira é majoritariamente preta e parda, mas, segundo o censo do Poder Judiciário de 2018, apenas 18% da magistratura nacional é negra, sendo, aproximadamente 16% pardos e 2% pretos. No Poder Judiciário do Espírito Santo, podemos afirmar, mesmo sem dados estatísticos locais, que esse percentual não passa de 10%”, frisa o desembargador.
Willian Silva lamenta que a representatividade de negros nos três poderes não corresponda à proporção negra na sociedade brasileira em geral, e aponta a falta de acesso à educação de qualidade como um dos principais empecilhos para a ocupação de cargos com maior exigência de conhecimento.
“Em virtude da reduzida presença de negros em seus quadros, a sociedade ainda não encontra no Poder Judiciário o seu espelho, a sua projeção racial, lamentavelmente diferente do que ocorre no sistema carcerário. Isso ocorre com os demais Poderes, mas o número de negros (pretos e pardos) neles é maior em virtude da menor exigência, como critério de seleção, de nível de instrução superior. Isso reflete nada mais que a enorme dificuldade que o pobre, especialmente o negro, tem de acesso à educação de qualidade no Brasil”, ressalta.
Desembargador: “não há solução imediata”
Para o desembargador Willian Silva, o primeiro negro a exercer a função no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), a questão da equidade de oportunidades entre brancos e negros em quaisquer dos setores de poder (público ou privado) não é de rápida solução e “depende de proatividade”.
“No Poder Judiciário, há norma positivada estabelecendo cota de 20% em concursos para magistrados e servidores. Como já se afirmou, há um conceito ultrapassado de meritocracia que não pode ser apreciada de forma neutra diante das desigualdades de oportunidades. Nós, negros, ficamos excluídos por mais de três séculos, quando fomos tratados como meros objetos. Não há solução imediata”, declara o desembargador.
Willian Silva afirma que, para ter mais equidade de oportunidades entre brancos e negros em quaisquer setores, há necessidade de mais políticas de inclusão e ações afirmativas. “Sempre que posso, tento colaborar. No Judiciário Capixaba, por exemplo, além das cotas para magistrados e servidores, recentemente aprovamos resolução prevendo vagas reservadas para negros no programa de estágio remunerado, alteração esta incluída por proposta minha. Parece pouco, mas serve para refletir a pluralidade e aumentar a autoestima do povo negro, eliminando a ideia de que existem obstáculos intransponíveis de acesso à estrutura de poder”, conclui o desembargador.
Uma luta solitária em Vitória
Na câmara de Vereadores de Vitória, das 15 cadeiras, sete são ocupadas por vereadores que se autodeclaram pardos, seis por brancos, uma por indígena e uma por preto. Wanderson Marinho (PSC) afirma que “combate ao racismo, igualdade racial e inserção do negro nas esferas de poder” é uma das três bandeiras que levanta em sua legislatura.
“Todos os ciclos de poder que sejam públicos devem ter o coletivo representado, e isso quer dizer termos negros, mulheres, idosos, brancos, jovens, etc. Em dois mandatos de vereador, sou o único representante da população preta. Já fui discriminado várias vezes, já entrei com representações sobre isso, já criei leis que auxiliam à inclusão, mas a luta pela igualdade e a representatividade é uma luta intensa, constante e no momento, solitária”, lamenta Marinho.
Ele pede união da população negra para mudar o quadro. “Espero que no próximo pleito a população negra se una e perceba que apenas com mais representantes pretos nas esferas de poder, conseguiremos ter as mesmas condições de disputar o mercado de trabalho, as eleições, os espaços de mídia, faculdades, escolas particulares, etc”, declarou o vereador.
Wanderson Marinho destacou o projeto de lei nº96/2017, de sua autoria, que estipula cota de reserva, em 30%, para negros e indígenas em concursos públicos da Prefeitura de Vitória. Recentemente, ele estendeu a proposta para os concursos públicos na Câmara de Vereadores de Vitória.
“Apesar de não ser uma pessoa que acredite no sistema de reserva de cotas como solução, no curto espaço de tempo, esse ainda é o remédio. Sonho com o dia em que, tendo mesmas oportunidades entre todos, as cotas desapareçam. Mas ainda, infelizmente, não chegou esse dia”.
Legislativo: pardos, mas não negros
Na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), dos 30 deputados, sete se autodeclaram pardos e apenas o deputado Marcos Mansur (PSDB) é declarado preto. Nenhum deles, entretanto, possui histórico político de envolvimento em causas do movimento negro ou afirmam sua negritude como ato político.
“De acordo com os critérios de cor do IBGE, para o movimento negro, o sujeito ter a cor jambo, marrom ou preta, não o torna negro. Porque ele tem que se reconhecer histórica, política, cultural e socialmente como negro. É um ato de afirmação. Às vezes a história pregressa desse sujeito é cercada de elementos racistas e ele nunca se deu conta. Então dizemos que esse cara é preto, mas não é negro nesse reconhecimento da negritude como ato político”, explica a professora Patrícia Rufino.
Dos 17 vereadores de Vila Velha, quatro se consideram pardos e a vereadora Patrícia Crizanto é preta. Na Serra, são nove pardos e quatro pretos entre 22 deputados. Basílio da Saúde (Pros) afirma que o número de deputados autodeclarados pretos diminuiu em relação à última legislatura, mas que o negro vem “construindo seu espaço na esfera pública”.
“Precisamos de mais participação dos negros disputando os espaços. Muitas vezes o que falta é a participação. Sabemos que viemos de baixo, com os piores cargos, mas isso está mudando. O estudo é a principal ferramenta. O negro está conseguindo se formar, pegar seu diploma, alçar voos maiores do que há um tempo atrás. Conquistamos mais, porque sabemos que não somos piores do que ninguém. Vemos aí o primeiro desembargador negro, Willian Silva, que vem do Bairro da Penha, humilde, vem de baixo. É um orgulho! A única diferença é a cor da pele. Na capacidade, somos iguais”, declara.
Já em Cariacica, dos 19 vereadores, sete são pardos e cinco se autodeclaram pretos. Wander Show (PRP) afirma que a cada dia o negro vem sendo “resistência” em todos os setores. Ele ainda não tem projetos específicos voltados para a população negra. “A representatividade do negro tanto nos poderes vem crescendo, com a formação de grupos de debates, de conscientização. Estamos ocupando mais espaços dentro desses quadros, quebrando paradigmas e estatísticas. É de extrema importância que o negro se junte a nós nessa missão, participando, debatendo, se capacitando, representando um município multifacetado” .