Dezenas de vídeos, fotos e postagens compartilhadas em redes sociais documentam a intensa atividade do que era chamado, em 2018, de quartel-general da campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro em Belo Horizonte.
Em um imóvel de 3.500 metros quadrados na principal artéria da Pampulha, a avenida Antonio Carlos, os responsáveis pelo QG distribuíam camisetas e adesivos de “Bolsonaro Presidente” para carros e motos. Na fachada do prédio, uma faixa com o slogan da campanha e o número do candidato do PSL, 17.
Ocasionalmente era estendida uma faixa com o nome de Bolsonaro e a promessa: “juntos mudaremos o Brasil”. Motoristas eram instados a buzinar, e carreatas foram organizadas a partir do endereço ou passando por ali. No dia da apuração, foi instalado um telão para centenas de pessoas.
Seria um comitê normal de campanha não fosse por um detalhe: nenhum gasto com o imóvel ou a cessão dele foram declarados à Justiça Eleitoral nem pela campanha de Bolsonaro nem pela dos aliados, o que contraria a lei eleitoral, segundo três especialistas ouvidos pela reportagem.
Documento da Prefeitura de BH mostra que o imóvel pertence à concessionária de veículos Brasvel. Um dos donos, Eduardo Brasil, confirmou à reportagem que o imóvel foi cedido a um grupo de bolsonaristas. Em 2018 a lei eleitoral proibia doações de empresas.
Hoje o espaço é oferecido pela imobiliária a um aluguel mensal de R$ 95 mil, mais IPTU de R$ 3.000. O QG funcionou por 51 dias, de setembro a outubro do ano passado, o que representa um gasto não declarado de cerca de R$ 166 mil.
Desde que foi eleito, Bolsonaro se vangloria de sua campanha ter desembolsado apenas R$ 2 milhões no país. Assim, só o valor não declarado do imóvel em Minas representa mais de 8% de todo o gasto oficial da campanha.
No mês passado, a Folha de S.Paulo revelou que ao menos R$ 420 mil (parte dos quais dinheiro público do fundo eleitoral) foram usados para confeccionar 10,8 milhões de santinhos e outros materiais, isoladamente ou em conjunto com outros candidatos do PSL, sem que fossem declarados pela campanha de Bolsonaro.
O imóvel de BH foi frequentado por vários políticos bolsonaristas na campanha de 2018. Em um vídeo, a atual deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) disse que iria participar, no local, de um “grande evento pró-Bolsonaro com várias religiões”. Ela mostrou o palco, que tinha nome e fotografia do candidato, e a fachada com o número do candidato e o slogan de Bolsonaro.
“Olha que coisa mais linda que o pessoal de BH fez aqui. Adesive seu veículo grátis aqui, ‘Drive Thru 17′”, afirma.
No mesmo vídeo, o empresário de mineração Abraão Veloso diz a Carla: “Aqui em Belo Horizonte já foram mais de 5.000 veículos adesivados”. Ele chamou o local de “um centro de convivência Bolsonaro”.
Abraão disse à reportagem na última quarta (4) que o imóvel foi uma “campanha espontânea”. Confirmou que recebeu o prédio do dono da concessionária, “sem custo”, por meio de “um termo de comodato”.
Eduardo Brasil também reconheceu que cedeu o lugar para que ali funcionasse um espaço de campanha pró-Bolsonaro, mas afirmou que o acordo foi fechado verbalmente. “Me chegou a solicitação, eu sou empresário, não tenho nada a ver com política, mas [cedi] por boa vontade, o imóvel estava vazio. Cedi porque também sou Bolsonaro”.
Veloso contou que passou a seguir o atual presidente nas redes sociais em 2017 e que naquele ano chegou a estar com ele na Câmara, em Brasília.
Afirmou que na ocasião disse ao político que iria trabalhar como voluntário em seu favor. “Ele tinha uma pauta de mineração, o nióbio, o grafeno. Eu sou minerador, me vi representado por ele”.
Um dos candidatos que mais distribuiu adesivos no espaço foi o hoje deputado Júlio Hubner (PSL-MG). Ele afirmou que não teve responsabilidade sobre a criação do QG, mas que o prédio não foi declarado à Justiça Eleitoral porque “não foi um comitê, foi uma iniciativa popular” e que o imóvel “não tinha nada caracterizando como de Bolsonaro”.
Disse, porém, que o local foi criado porque “várias pessoas se uniram em prol da campanha de Bolsonaro”. Especialistas ouvidos pela reportagem, que falaram em tese, sem saber do nome do candidato e dos detalhes do caso, disseram que uma suposta “iniciativa popular” não pode substituir uma declaração formal à Justiça Eleitoral.
O ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Henrique Neves afirmou que grupos como os “PACs”, comitês de ação política dos EUA, não são previstos em lei no Brasil.
“O que existe é a possibilidade de qualquer eleitor realizar gastos até R$ 1.060 em prol da candidatura de sua preferência, sem a necessidade de registro, desde que o valor não seja reembolsável. Assim, em tese os eleitores poderiam fazer esses gastos até este valor, sem necessidade de registro”.
O advogado Carlos Enrique Caputo Bastos disse que “haveria obviamente uma ilicitude porque houve um proveito político por parte ou do partido ou do candidato”.
“A lei eleitoral entende que esse tipo de doação pode ser economicamente aferível. Então certamente o valor teria que ser vinculado à prestação de contas como doação estimável em dinheiro, ainda que tenha sido por mero apoiamento, um comitê não formal, por parte de populares”.
É a mesma lógica aplicada, por exemplo, para declarar caronas de avião. Se não houvesse esse tipo de vedação a “iniciativas populares”, dizem os especialistas, boa parte das campanhas no Brasil seria terceirizada a grupos privados, a fim de burlar doações e gastos, o que ofenderia o princípio da isonomia entre as candidaturas.
Os especialistas também foram unânimes em dizer que o comando nacional da campanha não pode alegar desconhecimento, pois tem que agir de forma ativa para evitar casos do gênero.
Não houve consenso sobre a possibilidade de abertura de alguma ação judicial sobre o imóvel, pois contas aprovadas antes da posse dos candidatos, como foi o caso de Bolsonaro, em tese não podem ser reabertas.
OUTRO LADO
Questionado sobre o caso, o Palácio do Planalto respondeu que a demanda deveria ser “dirigida ao comitê do PSL”.
A advogada da campanha de Jair Bolsonaro, Karina Kufa, afirmou que “o presidente da República e a equipe que cuidou da prestação de contas de campanha, do escritório Kufa Advocacia, jamais tiveram informação desse suposto comitê”.
“A campanha presidencial somente utilizou um espaço físico em Brasília/DF, declarado na prestação de contas. Distribuição de material de campanha, com dobrada de outros candidatos, é de responsabilidade daquele que a confeccionou e pagou”, disse.
Ela disse que esse imóvel não foi declarado porque a campanha não soube de sua existência. O empresário Abraão Veloso afirmou que não houve participação da equipe nacional da campanha de Jair Bolsonaro na formação do QG, mas confirmou que o local era do conhecimento do comando, sem citar nomes.
“Mandaram mensagem, achavam bacana, mas eu não sei quem é a pessoa especificamente. Mas dizendo que no Brasil inteiro estavam vendo, que ficou bacana a ideia. Mas não teve [isso de] eles falarem diretamente comigo aqui, não”, disse.
O PSL, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito presidente em 2018, era comandado em Minas Gerais por Marcelo Álvaro Antônio, deputado federal reeleito e atual ministro do Turismo. Ele foi denunciado pelo Ministério Público estadual sob acusação de envolvimento em um esquema, revelado pela Folha de S.Paulo, de candidaturas de laranjas.
O presidente da República saiu do PSL no mês passado para tentar fundar uma nova sigla, a Aliança pelo Brasil. Veloso disse que advogados lhe disseram que o local poderia funcionar sem o nome e a fotografia do candidato na fachada e que pessoas do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) estiveram lá e o aprovaram.
Procurado pela reportagem, o TRE respondeu que não havia localizado registro de nenhuma visita ao local.
O PSL estadual de Minas Gerais não respondeu até a conclusão deste texto.