Estudos recentes sobre a Covid-19 mostram que a doença tem uma peculiaridade em relação a muitas outras já conhecidas. Isso porque o Sars-CoV-2 pode “enganar” o organismo, fazendo ativar poucos anticorpos ou mesmo nenhum – já no caso de uma gripe, por exemplo, o corpo obrigatoriamente passa a produzir essas estruturas de defesa, que ajudam no combate à infecção.

Esse quadro tem sido notado em pacientes com sintomas leves ou com os ditos assintomáticos, o que causou estranheza nos especialistas.

Mas, se o organismo não cria anticorpos suficientes para combater o Sars-coV-2, de onde vem a imunidade nesses casos? A resposta para a pergunta pode estar nos linfócitos T (ou células T), que fazem parte do sistema imunológico e são capazes de identificar e destruir células infectadas.

Um estudo do Instituto Karolinksa, na Suécia, mostra que pessoas que apresentam resultados negativos em testes de anticorpos contra o coronavírus podem, ainda assim, ter alguma imunidade ao vírus. E essa imunidade vem das células T.

No caso do coronavírus, pesquisas apontam que as células T conseguem desenvolver suas funções mesmo em pessoas que não têm anticorpos específicos para o vírus – e também em indivíduos com manifestações leves de Covid-19 ou sem sintomas.

Quem apresentou alta quantidade de células T se mostrou mais resistente ao novo coronavírus, de acordo com o estudo.

Esse fato ligou um sinal de alerta para os cientistas em relação aos testes realizados pela maior parte da população mundial, que rastreiam anticorpos. Talvez esse não seja o melhor método para verificar se alguém está ou não contaminado, dado que há indivíduos que, apesar de infectados, não têm anticorpos detectáveis.

“Na verdade, o teste de anticorpos [de farmácia], quando dá negativo, diz que você não tem anticorpos. Ele não diz que você não está com o vírus. Você pode estar com o vírus ali, naquele momento, mas você ainda não produziu anticorpos, o que pode demorar três semanas, e tem gente que nem produz”, afirma Natalia Pasternak, microbiologista, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência.

“Com os estudos mais recentes, a gente viu que nem todo mundo produz anticorpos em um nível detectável. Ou esses anticorpos são produzidos, mas depois de dois meses eles caem e não conseguem mais detectar no sangue. Aí [para detectar], não é nem com teste rápido, é com o teste sorológico bem feito, em laboratório. Então, o anticorpo passa a não ser um bom marcador para a gente fazer prevalência da doença na população”, completa a cientista.

Uma pesquisa publicada na revista “Science Immunology” também mostrou que pacientes graves podem produzir rapidamente células T no organismo na tentativa de combater o novo coronavírus.

Cientistas constataram que aqueles que desenvolvem forma mais grave da doença têm números extremamente baixos de uma célula imune chamada célula T — Foto: Getty Images

Cientistas constataram que aqueles que desenvolvem forma mais grave da doença têm números extremamente baixos de uma célula imune chamada célula T — Foto: Getty Images

Testes de célula T

Então, por que não realizar testes de células T na população para ter um maior detalhamento das pessoas com possível imunidade ao novo coronavírus?

“Para trabalhar com linfócito, você tem de tirar a célula viva e trabalhar com essa célula ainda viva. Os ensaios para você ver a atividade demoram alguns dias, tem todo um processamento de material que é demorado, laborioso e muito mais caro”, explica Adriana Bonomo, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa sobre o Timo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

Natalia Pasternak acrescenta: “A gente não tem como rastrear isso na população de uma maneira fácil e rápida como no teste de anticorpo. A gente vai precisar desenvolver novas tecnologias para a gente ver se consegue, talvez, um teste mais rápido para a célula T, um teste mais fácil”.

De onde pode ter vindo a imunidade das células T?

Um recente estudo publicado na revista “Cell” apresenta uma hipótese de resposta à pegunta acima: o fato de pessoa ter superado outros vírus anteriores da família coronavírus pode ter deixado como legado alguma imunidade no corpo. Esse fenômeno é conhecido como imunidade cruzada.

Existem sete tipos de coronavírus já detectados no mundo, e a alguns deles a população é exposta anualmente em forma de gripe ou alguma outra doença respiratória.

Assim, se um indivíduo já teve contato com outro coronavírus no passado, é grande a possibilidade de as células T terem criado uma memória – e isso seria “útil” caso ele fosse infectado agora pelo Sars-CoV-2.

As células T fazem parte da imunidade adaptativa, ou seja, criam memória de outros corpos estranhos que já teve contato no passado e, assim, saberá como combatê-lo em um próximo momento.

“Vamos dar um exemplo com o Influenza, que é superconhecido. Todo ano, a gente tem que tomar vacina de Influenza, porque o vírus muta. Mas quem toma em um ano e não toma no seguinte tem uma proteção parcial. Por que? Porque os vírus são parecidos, e você faz uma resposta imune específica reconhecendo pedaços, e esses pedaços é que são similares”, explica diz Adriana Bonomo.

“Aí, você se infectou com o primeiro, nunca viu o segundo. Mas, se você se infectar com o segundo, você pode responder melhor a esse segundo, porque você já viu um pedaço dele que era igual ao primeiro. Como se você fosse vacinado. Os dois vírus são bastante parecidos (Sars 1 e 2). Agora, o que se mostrou foi que tem resposta imune T, de célula T, mas não se mostrou se eles estão protegidos ou não.”

O Sars-Cov-2 utiliza proteínas em forma de espinho para aderir às células humanas que ataca — Foto: GETTY via BBC

O Sars-Cov-2 utiliza proteínas em forma de espinho para aderir às células humanas que ataca — Foto: GETTY via BBC

Medicamentos e vacinas

No Reino Unido, um grupo de pesquisadores está testando a interleucina 7, um medicamento conhecido por aumentar a produção de células T no corpo. A tentativa servirá para observar se as células podem ajudar, realmente, na recuperação dos pacientes contaminados com a Covid-19.

“Tem várias estratégias, vi alguns outros intermediários de resposta imune sendo testados, mas acho que a interleucina 7 seja um bom candidato. O teste de medicamento tem uma teoria linda, mas pode não funcionar, então sempre fico com um passo atrás. A interleucina é boa, então vamos testar, não vamos sair distribuindo por aí como fizeram com outros medicamentos”, diz Natalia Pasternak.

As mais diversas vacinas produzidas pelo mundo também voltaram as suas atenções para as células T na busca de uma resposta imunológica para esta célula que pode dar grande auxílio no combate à pandemia do novo coronavírus.

No Brasil, por exemplo, a vacina executada por cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pelo Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) não deixou de lado as células T. Elas já estão sendo testadas em camundongos.

“Estamos fazendo composições diferentes. Quando formulamos uma vacina, a gente formula para desenvolver anticorpo, para dar resposta. Nessa mesma vacina, a gente formula outra mantendo essa mesma composição, mas colocamos um componente a mais. Esse componente a mais pode estimular a célula T, porque há um ligante ali dentro que faz com que as células T reconheçam como algo diferente”, explica Gustavo Cabral, imunologista pela USP e pós-doutor pela Universidade Oxford, na Inglaterra, e na Universidade de Berna, na Suíça.

Nos Estados Unidos, a vacina da Inovio, chamada de INO-4800, teve resultados preliminares positivo e tem em sua composição estimulantes para aumentar a ação das células T.