Diferentes hospitais e instituições de pesquisa brasileiros decidiram ir para o confronto contra a covid-19 juntos e, nesta quinta-feira (23), o time marcou o primeiro gol — e ainda fora de casa, no exterior.
Criada para unir dados e esforços de diversas partes do país, a Coalizão Covid-19 Brasil tem hoje nove frentes de estudo em andamento com diferentes tratamentos em potencial para a doença causada pelo Sars-CoV-2. Nesta quinta-feira, a coalizão publicou os primeiros resultados de uma destas linhas, a que testou a hidroxicloroquina e ainda a hidroxicloroquina somada à azitromicina — e revelou que estes medicamentos não trazem melhoras no tratamento da doença.
A publicação veio no New England Journal of Medicine, considerado o periódico médico com maior fator de impacto do mundo no relatório Journal Citation Reports 2018, da consultoria Clarivate Analytics. O fator de impacto é uma métrica composta por vários indicadores da influência de uma publicação científica.
O estudo brasileiro é do tipo RCT, sigla em inglês para estudo clínico randomizado controlado, considerado “padrão ouro” em pesquisas médicas por seu rigor. Em trabalhos assim, participam dos testes pacientes (clínico), divididos aleatoriamente (randomizado) em grupos — aquele que recebe o tratamento em teste e o chamado grupo controle, que recebe outro tratamento para comparação ou placebo (um medicamento inócuo).
Neste caso, 667 pessoas com quadros leves ou moderados de covid-19 foram divididas em três grupos: um que recebeu hidroxicloroquina associada à azitromicina (217 pessoas); outro que recebeu apenas hidroxicloroquina (221 pessoas); e o grupo controle, que recebeu apenas o tratamento padrão para a doença (229), o que fica a cargo dos médicos. A maioria dos pacientes teve confirmação de covid-19 pelo chamado teste molecular, ou PCR, mas alguns tiveram pelo critério clínico (sintomas avaliados por médicos).
Usando uma escala com sete possíveis desfechos para estes casos (confira abaixo) após o início do tratamento (com duração de sete dias), os pesquisadores concluíram que a hidroxicloroquina sozinha ou associada à azitromicina praticamente não fez diferença no curso da doença.
Ao 15º dia após o início dos tratamentos, os pacientes foram classificados por seu estado de saúde segundo avaliação dos médicos — em uma escala que vai das situações mais tranquilas às mais graves por causa da covid-19:
- 1. Paciente em casa sem limitações às atividades habituais;
- 2. Paciente em casa com limitações às atividades habituais;
- 3. Paciente hospitalizado sem necessidade de oxigênio;
- 4. Pacientes hospitalizado com necessidade de oxigênio;
- 5. Pacientes hospitalizado necessitando de ventilação mecânica não invasiva ou cânula de alto fluxo;
- 6. Paciente hospitalizado necessitando de ventilação mecânica invasiva;
- 7. Óbito.
Os percentuais de pacientes em cada nível da escala foram muito semelhantes em todos os três grupos, mostrando a indiferença dos tratamentos testados. Por exemplo, na classificação 1, a mais leve, estavam 69% dos pacientes que receberam hidroxicloroquina e azitromicina; 64% dos que receberam apenas hidroxicloroquina; e 68% daqueles no grupo controle. Na faixa 7, de óbito, a distribuição foi respectivamente 2%, 3% e 3% entre os pacientes de cada grupo.
Coautor do estudo e médico do Hospital Sírio-Libanês (um dos fundadores da coalizão), Luciano Cesar Pontes de Azevedo afirma que esta escala é sugerida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma métrica para pesquisas com a covid-19, ainda mais para estudos multicêntricos como esse — que envolveu 55 hospitais pelo Brasil.
No mundo, já foram publicados outros estudos RCT com a hidroxicloroquina e com a cloroquina — da qual a primeira é um derivado —, mas poucos em revistas renomadas com revisão dos pares (ou peer review, uma avaliação e aprovação independente do trabalho por especialistas da mesma área), envolvendo centenas de pacientes em vários hospitais ao mesmo tempo, como é o caso do estudo brasileiro.
“Um estudo multicêntrico tem a vantagem de aumentar a reprodutibilidade do estudo — ou seja, a capacidade do resultado ser generalizável é grande. Quando se trata de apenas um hospital, os resultados podem estar sujeitos às características daquele local. Já um estudo multicêntrico inclui hospitais de excelência, outros com estruturas não tão boas… Isso torna os resultados mais representativos da realidade”, explica Azevedo, que tem doutorado em medicina pela Universidade de São Paulo (USP).
Dificuldade em encontrar pacientes que não tivessem já tomado cloroquina
A publicação no New England Journal of Medicine mostra também que, além de não terem mostrado benefícios, os tratamentos testados foram associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do chamado intervalo QT, um sinal de maior risco para arritmia detectado por eletrocardiograma; e aumento de enzimas TGO/TGP no sangue, alteração que pode indicar lesão no fígado.
Leticia Kawano-Dourado, também coautora e médica no hospital HCor (que faz parte da coalizão), explica que a equipe acompanhou os pacientes testados muito de perto, fazendo eletrocardiograma, exames e consultas frequentes.
“O ambiente de ensaio clínico é muito controlado para não oferecer riscos para o paciente. Diferente da vida real. Quem vai tomar estes remédios e fazer eletrocardiograma todo dia em casa? Isso nos preocupa”, diz a médica, referindo-se ao uso da cloroquina sem indicação médica, como tem sido observado na pandemia.
Os autores citam no artigo, inclusive, a dificuldade que tiveram para encontrar pacientes que não tivessem já tomado a cloroquina — o uso na véspera atrapalharia os experimentos, por isso pessoas que tivessem tomado recentemente o medicamento não foram recrutadas.
“O estudo começou a recrutar pacientes no final de março, então pegamos a empolgação da cloroquina. Foi muito difícil encontrar pessoas que não tivessem tomado o remédio, em várias partes do país”, conta Kawano-Dourado, que tem doutorado em pneumologia e participou ativamente do recrutamento de pacientes em São Paulo.
A médica destaca que artigos científicos não devem ser encarados isoladamente — mas justamente, no conjunto de trabalhos que têm sido publicados, ela avalia que o estudo brasileiro vai ao encontro de outros mostrando a ineficácia e falta de segurança da cloroquina no tratamento da covid-19.
“Nosso estudo não é uma bala de prata, mas um tijolinho na construção do conhecimento sobre este tema”, resume.
“Estamos vendo resultados se reproduzirem em lugares diferentes, com pacientes diferentes, práticas clínicas diferentes. A reprodutibilidade dos achados vai dando força (a esta intepretação). Com isso, nossos resultados são um sinal, e não um ruído.”
Kawano-Dourado cita estudos recentes refutando os benefícios da cloroquina, como um publicado na Annals of Internal Medicine na semana passada, ou o próprio projeto Solidarity, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e que decidiu deixar de fazer testes com a cloroquina por seus riscos e evidências de ineficácia.
Luciano Cesar Pontes de Azevedo explica ainda que, inicialmente, a intenção de associar a hidroxicloroquina à azitromicina era verificar se a junção potencializava os efeitos de ambos medicamentos. Mas, segundo ele, o fato de a dupla e nem de a hidroxicloroqiuna mostrarem benefícios afasta ainda mais o potencial da cloroquina para tratar a covid-19.
“Havia uma discussão sobre se a azitromicina poderia ser benéfica associada à cloroquina — mas temos que lembrar que este estudo começou a ser desenhado em março, então naquele momento sabíamos muito menos coisas do que hoje”, diz o médico.
“A azitromicina é um antibiótico, mas tem também efeito anti-inflamatório. Ela continua sendo usada em hospitais para a covid-19, porque é considerada bastante segura. Mas, temos visto, como no nosso estudo, que ela também não traz benefícios.”
As outras oito linhas de pesquisa da coalizão incluem também a hidroxicloroquina, usada em circunstâncias diferentes, como em casos mais graves; e ainda outros medicamentos, como a dexametasona e tocilizumab. Depois desta estreia no New England Journal of Medicine, há outras publicações da coalizão no forno que podem sair nos próximos meses.
A coalizão foi formada pelo Hospital Israelita Albert Einstein; HCor; Hospital Sírio-Libanês; Hospital Moinhos de Vento; Hospital Alemão Oswaldo Cruz; a Beneficência Portuguesa de São Paulo; o Brazilian Clinical Research Institute (BCRI); e a Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva (BRICNet).
O estudo foi financiado pela coalizão e pela farmacêutica EMS Pharma e passou por aprovações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).