A covid-19 surgiu no contexto de um planeta marcado por profundas desigualdades, que devem se aprofundar ainda mais em um cenário pós-pandemia. No Brasil, um dos campeões no quesito desigualdade, a imunização baseada unicamente em critérios etários acabou beneficiando bairros mais ricos das grandes metrópoles e as áreas urbanas que concentram maior número de deslocamentos para o trabalho também contaram com o maior número de óbitos.
A situação é evidenciada pelo estudo “A covid-19 e as desigualdades”, divulgado pela Rede Nossa São Paulo em setembro, mostra que, de janeiro a julho de 2021, no distrito de Cidade Tiradentes, uma pessoa internada em função do agravamento da doença tinha praticamente 2,4 vezes mais chances de morrer do que alguém nas mesmas condições no distrito do Morumbi.
Outro indicador da desigualdade social no Brasil relacionada à realidade da pandemia é o trabalho remoto. Um estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Economia da FGV (FGV Ibre) aponta que somente um em cada cinco trabalhadores tem condições mínimas para trabalhar em regime home office. Quando analisado o potencial dessa modalidade no país, considerando a infraestrutura básica de um computador, acesso à internet e energia elétrica de qualidade, este índice é de apenas 17,8%, menos da metade dos Estados Unidos, que chega a 37%. Ainda segundo a pesquisa, as oportunidades de home office chegam a 52,9% para quem tem ensino superior completo e a 1,5% para aqueles com ensino fundamental incompleto.
Visões de mundo
“No mundo pós-covid, testemunharemos o surgimento de novas geografias de descontentes, reforçadas por disparidades intraurbanas e inter-regionais, principalmente nos países em desenvolvimento”, afirmou o professor da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Haddad, durante seminário on-line promovido pela Fapesp e pelo Instituto do Legislativo Paulista (ILP). As informações são de José Tadeu Arantes, em matéria da Agência Fapesp.
O conceito de “geografia de descontentes”, apresentado por Haddad, tem como base a ideia de que a maneira como as pessoas vivem e trabalham influencia suas visões de mundo e também são determinantes nos desafios que enfrentam no cotidiano.
Pandemia, desigualdades e mobilidade urbana
De acordo com a professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) e coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) Raquel Rolnik, na cidade de São Paulo, as áreas que concentram o maior número de saídas para o trabalho foram também as que acumularam o maior número de óbitos pela covid-19. O maior tempo de exposição no transporte coletivo afetou os segmentos da população que precisam fazer maiores deslocamentos entre o local de moradia e o local de emprego.
“O ‘fique em casa’ não pôde contemplar a maior parte dos trabalhadores. Só um percentual pequeno da força de trabalho da cidade tinha um tipo de ocupação que lhe permitia trabalhar de casa. Além do fato de a conexão com a internet ser absolutamente diferenciada para os diversos grupos sociais”, afirmou.
Disparidades
Gabriel Poli de Figueiredo, doutorando na FAU-USP e pesquisador do INCT –Internet do Futuro para Cidades Inteligentes –, destacou a evidência das desigualdades na área digital. “Expectativas em relação ao trabalho remoto, à redução dos deslocamentos, de que tudo poderia ser entregue imediatamente e que haveria uma explosão nos tipos de serviços oferecidos por via digital. Mas o que de fato aconteceu? Mais de 70% das pessoas ocupadas nas classes A e B puderam aderir ao trabalho doméstico. Porém, nas classes C, D e E, a adesão não passou de 28%”.
“Também houve uma grande disparidade em relação ao tipo de dispositivo utilizado para a realização do trabalho remoto. Enquanto 77% das pessoas ocupadas nas classes A e B utilizaram o computador, laptop, notebook, nas classes D e E as pessoas tiveram que recorrer ao celular”, explicou o pesquisador.
Com base em uma pesquisa de 18 meses realizada pelo Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP (Nereus), Haddad pontuou que, de forma geral, a pandemia aprofundou desigualdades de forma mais intensa nas famílias pobres de áreas metropolitanas do Sul Global, atingindo em especial bairros densamente povoados, com grande parte do mercado de trabalho informal e pouca presença do Estado. “Estudos de impactos no Brasil, Angola, Colômbia e Marrocos, realizados no Nereus, mostraram que as principais perdas se concentraram nas regiões que mais contribuem para o Produto Interno Bruto [PIB] desses países, que coincidem com as áreas urbanas mais densamente povoadas e fortemente relacionadas com a economia de aglomeração”, apontou.
Mais informações sobre o seminário na Agência Fapesp