Chefe do governo brasileiro discursou como se estivesse falando ao seu “cercadinho”. “Ele não é um estadista, não está no lugar certo”, afirma Thomas Heye
O discurso de Jair Bolsonaro na 76° Assembleia Geral das Nações Unidas, a ONU, causou vergonha no Brasil e no mundo por diversos motivos. Pelas mentiras, informações falsas, defesa de protocolo anticientífico no combate à pandemia e absoluta ignorância sobre o papel de um chefe de Estado. No organismo que reúne os líderes do mundo, que normalmente discursam sobre questões de interesse global, o presidente brasileiro falou como se estivesse se dirigindo ao seu cada vez menor cercadinho de fanáticos em Brasília. “Claro que é absurdo. Mas ele não tem noção disso. Ele não é um estadista, não está no lugar certo. É um estranho no ninho, uma comédia. O pessoal está batendo palmas para ele dançar”, diz Thomas Heye, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para Heye, “Bolsonaro passou um atestado de indigência moral e intelectual para o planeta inteiro”. O termo “que vergonha” e as hashtags #BolsonaroVergonhaDoBrasil e #Bolsonarovergonhamundial estiveram entre os assunto mais citados no Twitter. No palco diplomático mais importante do planeta, o ocupante da Presidência do Brasil proferiu uma profusão de mentiras. Disse que estava no púlpito para “mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”. Afirmou que o país está “há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção”.
Declarou apoio ao tratamento precoce contra a covid. Nesse trecho do discurso, ele inclusive se autoincrimina perante o mundo sobre crimes que juristas importantes consideram que a CPI da Covid comprovou inequivocamente. Mentiu sobre dados da Amazônia, de cuja destruição seu governo é cúmplice e incentivador. Manifestou “profunda apreensão” pelo futuro do Afeganistão, e prometeu: “Concederemos visto humanitário para cristãos”, o que foi considerado o carimbo de sua islamofobia. Menos de 1% dos afegãos são cristãos.
Chefe do governo mancha imagem do país
A fala do brasileiro na ONU não piora a situação de vergonha internacional, mas confirma a já péssima imagem do Brasil perante líderes, imprensa e sociedades do mundo todo, opina o professor da UFF, após a vergonha na ONU. O problema é que, uma vez “colada” ao país, a mancha leva muito tempo para ser limpa. Heye cita o Plano Cruzado. Em 20 de fevereiro de 1987, o então presidente José Sarney fez um pronunciamento de rádio e TV anunciando a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa.
O calote nem chegou a ser completamente concretizado. Na época, o país deixou de pagar principalmente os credores de mais longo prazo, bancários e bancários privados. “Mas as dívidas mais de curto prazo e com organismos internacionais, não”, explica o economista Guilherme Mello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Mesmo assim, só por isso, nossos filhos e netos pagarão mais pelo dinheiro emprestado lá fora, porque nosso risco aumentou”, diz Heye. “Danos graves causados à imagem do país podem até ser revertidos mais rapidamente em relação a governos. Amanhã, de repente, o governo Biden, por exemplo, vira nosso melhor amigo, se for interesse deles. Já em relação à sociedade americana, empresas, imprensa, academia e outros setores, a coisa é diferente. Governos estão atrás de interesses imediatos, mas convencer um professor universitário, um jornalista, tem que ter mais substância do que simplesmente retórica e boa vontade.”
The Guardian: “Mentiras descaradas”
A imprensa internacional, aliás, não amenizou nas críticas. O britânico The Guardian foi duro. Disse que o presidente brasileiro declarou na ONU que tinha ido apresentar “um novo Brasil, com sua credibilidade restaurada perante o mundo”. “Mas em um discurso de 12 minutos, o populista de extrema direita pregou remédios ineficazes contra a Covid, denunciou medidas de contenção do coronavírus e propagou uma sucessão de distorções e mentiras descaradas sobre a política brasileira e o meio ambiente”, diz o Guardian.
O The New York Times publicou matéria de destaque com o título: “Não vacinado e desafiador, Bolsonaro rebate críticas no discurso da ONU”. “O presidente do Brasil liderou uma das respostas à pandemia mais criticadas do mundo. Bolsonaro minimizou repetidamente a ameaça do vírus, criticou medidas de quarentena e foi multado por se recusar a usar máscara. Seu governo demorou a garantir o acesso às vacinas, mesmo com o vírus sobrecarregando hospitais em todo o país.”